Em mais um ano de pandemia, o mundo hoje respira aliviado por ter à disposição armas eficazes para combater o coronavírus, como as vacinas e as primeiras pílulas antivirais.
Entretanto, especialistas argumentam que a desigualdade na distribuição global desses medicamentos, assim como foi visto para as vacinas, deve continuar a prejudicar países de baixa renda, sem acesso a essas drogas, enquanto países ricos possuem estoques suficientes para tratar suas populações.
A Pfizer anunciou em março as 35 empresas licenciadas para produzir uma versão genérica de sua droga contra Covid, a Paxlovid. O acordo, via mecanismo Medicine Patent Pool (MPP) -uma ferramenta que tem apoio da Organização Mundial da Saúde para produção de genéricos em países de média e baixa renda- foi assinado pela própria farmacêutica com o intuito de ajudar a fornecer o medicamento a países considerados prioritários, que concentram 53% da população mundial. Pílula, que atua bloqueando a replicação do vírus nas células, teve sua eficácia comprovada em estudos clínicos com redução de 89% do risco de hospitalização e já está disponível em diversos países, entre os quais os Estados Unidos.
Entre as empresas escolhidas para produzir o genérico está uma brasileira, a Nortec Química, mas a fabricação será restrita à exportação, não sendo prevista a venda para o mercado interno. A Anvisa aprovou o uso emergencial da pílula no último dia 30.
A licença é para produção apenas do nirmatrelvir, um dos dois antivirais presentes na formulação. O outro, o ritonavir, também utilizado no tratamento contra HIV, será produzido em outro local, diz o presidente da empresa, Marcelo Mansur.
“Como a Nortec trabalha apenas com o IFA [ingrediente farmacêutico ativo], vamos fornecer esse produto para outros licenciados do programa que irão finalizar o medicamento”, afirmou. O empresário não disse qual deve ser o preço de venda do IFA para a exportação em razão de sigilo do acordo.
“É uma situação lamentável porque de novo o Brasil cai na armadilha de um país de renda média, ou seja, não é apto para receber o medicamento via MPP e vamos produzir, mas não vamos poder vender para o mercado interno ou América Latina”, diz Elize Massard, professora da Fundação Getulio Vargas.
Para ela, a oferta do medicamento por aqui está restrita a uma decisão de compra pelo governo federal, no preço definido pela Pfizer, e até agora o país não tem demonstrado capacidade para fazer uma reserva de mercado.
A Pfizer disse à Folha que os detalhes sobre a disponibilidade do medicamento no Brasil estão em processo de definição e que não comenta contratos ou negociações com o governo brasileiro. Sua capacidade de produção, diz, é entre 80 e 120 milhões de doses de Paxlovid neste ano. A empresa diz estar “comprometida em trabalhar para o acesso equitativo ao tratamento oral”.
Em relação ao licenciamento, a Pfizer não respondeu por que o Paxlovid produzido aqui não será vendido no Brasil. Em nota, disse ainda que “continua a avaliar opções internas e externas em termos de capacidade produtiva, expansão de suas unidades de manufaturas, entre outras possibilidades, mas que, até o momento, não há acordos para transferência de tecnologia firmados”.
Especialistas consideram que o mecanismo MPP acaba sendo muito cômodo para as próprias farmacêuticas, uma vez que elas escolhem as licenciadas, mas não há a liberação das patentes para gerar autonomia no desenvolvimento de produtos.
“Além da demora no processo, a própria Pfizer escolhe quem vai produzir e para quem vai vender, então de novo há uma concentração de renda que é incompatível com uma pandemia”, avalia Pedro Villardi, doutor em saúde e membro do GTPI (Grupo de Trabalho sobre Propriedade Intelectual).
Segundo ele, muitas vezes os critérios de escolha para os potenciais beneficiários do programa são mercadológicos, e não de saúde pública.
Mesmo os países aptos a receberem o Paxlovid via MPP só devem recebê-lo no último bimestre de 2022 ou começo de 2023, prevê Villardi. “E a produção da Pfizer para este ano é irrisória. É de novo deixar nas mãos de uma multinacional o monopólio para fabricação de medicamentos em meio a uma emergência sanitária”, diz.
No caso das vacinas, o mecanismo de distribuição global da OMS, o Covax Facility, até hoje não conseguiu atingir a sua meta de vacinar 70% da população, e a quebra das patentes tampouco facilitou o acesso.
A mesma visão é compartilhada pela economista Monica De Bolle, professora da Universidade John Hopkins e mestranda no programa de imunologia na Universidade Georgetown. Para ela, o argumento das farmacêuticas de perda de lucro com a quebra de patentes é uma “chantagem tácita” feita aos governos para manter o monopólio de mercado.
“Não é verdade que os governos não têm como ressarcir as companhias pela eventual perda de lucro. E eles se deixam levar por essa linha argumentativa porque a venda de grandes quantidades de medicamentos ou vacinas também é revertido em receita para os países de origem dessas empresas, nesses casos Estados Unidos, principalmente, mas também países da Europa”, diz.
Uma forma de “forçar” a quebra das patentes é a Lei das Licenças (14.200/2021), sancionada em agosto pelo Senado brasileiro, mas que ainda aguarda votação no Congresso após o presidente Jair Bolsonaro (PL) vetar itens importantes dela, incluindo o mecanismo chamado de “licença compulsória”.
“O Brasil poderia ser um exemplo mundial nesse tema. Historicamente, nosso parque farmacêutico foi relevante na produção de medicamentos genéricos contra HIV por meio da engenharia reversa, e isso poderia ocorrer novamente para a Covid”, explica Villardi.
Em nota, o Ministério da Saúde disse que toda solicitação para incorporação de tratamentos no SUS segue o rito padrão da Conitec (Comissão de Nacional de Incorporação de Novas Tecnologias), de avaliação inicial, consulta pública e avaliação final. A pasta não respondeu se há interesse do governo em adquirir doses de Paxlovid ou molnupiravir.
A Fiocruz, por meio da Farmanguinhos, disse que está em conversas avançadas com a MSD para definir um modelo de cooperação técnica para avaliar o antiviral contra Covid molnupiravir e outros medicamentos no enfrentamento a outras infecções virais, como dengue e chikungunya.
Fonte: Folhapress
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