O físico Wesley Cota, pesquisador da Universidade Federal de Viçosa (UFV), em Minas Gerais, montou um dos sites mais completos para o monitoramento da pandemia de covid-19 no Brasil.
A página, que traz informações sobre casos, hospitalizações, mortes, testagem e vacinação detalhados pelas cidades do país, serve de referência até para o Our World In Data, portal criado na Universidade de Oxford, no Reino Unido, que reúne estatísticas globais sobre a crise sanitária.
O especialista se mostra apreensivo com a atual situação do país. “A gente está no escuro. Vemos os profissionais de saúde relatando aumento de casos de infecções respiratórias, mas não temos a menor ideia se é gripe ou covid”, aponta.
“Também não sabemos se esses casos têm a ver com a variante ômicron e o quanto ela está disseminada por aqui.”
Cota não é o único a levantar essa preocupação: ao longo das últimas semanas, diversos especialistas que acompanham a situação da covid-19 no Brasil fizeram uma série de críticas a respeito da disponibilidade de dados capazes de refletir o que realmente está acontecendo por aqui.
O temor deles é que, a exemplo do que ocorre agora em várias partes do mundo, como Reino Unido, França e Estados Unidos, a ômicron esteja se espalhando de forma silenciosa e acelerada pelo país, impulsionada pela maior capacidade de transmissão dessa variante e pelas aglomerações e festas de final e de início de ano.
A principal dificuldade para ver esse aumento claramente, dizem eles, é o fato de que o Brasil nunca teve uma política pública de testagem, isolamento de casos positivos e rastreamento de contatos.
Oportunidade desperdiçada
Desde março de 2020, a Organização Mundial da Saúde (OMS) bate na tecla de que testar, isolar e rastrear são atitudes primordiais para lidar com a covid-19.
Num discurso realizado em 16 de março daquele ano, o biólogo etíope Tedros Adhanom Ghebreyesus, diretor-geral da entidade, classificou essas três ações como “a espinha dorsal da resposta à pandemia”.
“A forma mais eficaz de prevenir infecções e salvar vidas é quebrar as cadeias de transmissão. Para fazer isso, é preciso testar e isolar”, declarou.
“Você não pode combater um incêndio com os olhos vendados. E não podemos parar esta pandemia se não soubermos quem está infectado.”
“Temos uma mensagem muito simples para todos os países: teste, teste e teste”, orientou Ghebreyesus.
A recomendação foi seguida à risca pelos países mais bem-sucedidos no controle do vírus: Austrália, Nova Zelândia, Coreia do Sul e partes da Europa são alguns exemplos de locais que conseguiram lançar um programa de testagem para detectar o aumento de casos positivos e agir rapidamente, antes que a situação saísse do controle.
A bióloga e divulgadora científica Tabata Bohlen, que morou em dois países europeus nos últimos meses, relata como é fácil ter acesso aos exames por lá.
“Na Alemanha, até o final de setembro, era possível realizar testes gratuitamente em cabines espalhadas na cidade. Eles eram feitos por profissionais e nós recebíamos uma mensagem de texto com o resultado”, conta.
“Além disso, você encontra testes para comprar em supermercados e farmácias, com preços que vão de 1 a 5 euros [6 a 30 reais].”
Esses autotestes, que são comprados por um valor baixo e podem ser feitos em casa, sequer estão disponíveis ou regulamentados no Brasil.
“Na Áustria, pelo que vi até agora na cidade de Viena, as pessoas conseguiam retirar sete testes por semana para fazer em casa nas farmácias por semana e o valor era descontado do plano de saúde. Em alguns casos, era necessário enviar um vídeo do momento da testagem, para garantir que a coleta foi feita de forma apropriada.” “Também há centros de testagem caso você não queira fazer por conta própria”, completa.
Na contramão desses lugares, o nosso país nunca teve uma política de testagem da covid bem definida, de acordo com especialistas ouvidos pela BBC News Brasil.
“Se tem um quesito que o Brasil realmente falhou e continua a falhar nesta pandemia é na testagem. Nunca houve uma disponibilidade de exames ou uma mensagem clara de quando, como e quem deve ser testado”, analisa Lorena Guadalupe Barberia, professora do Departamento de Ciências Políticas da Universidade de São Paulo e integrante do Observatório Covid-19 BR.
“E não basta disponibilizar os kits de exames: o governo deveria ter um programa amplo e coerente. Era preciso deixar claro o que fazer se o resultado fosse positivo, como se isolar adequadamente, além de avisar as pessoas com quem você teve contato nos últimos dias para que elas também fossem testadas”, complementa.
O enfermeiro e epidemiologista Laio Magno, professor da Universidade do Estado da Bahia (Uneb), entende que o país tinha tudo para ser um exemplo mundial na testagem da covid, mas perdeu essa oportunidade.
“Poderíamos ter aproveitado nossa imensa rede de atenção básica de saúde. Nós temos equipes de saúde da família, médicos, enfermeiros, agentes comunitários e outros profissionais que estão espalhados por todo o país e fazem esse elo do Sistema Único de Saúde com as comunidades”, avalia o especialista, que também integra a Comissão de Epidemiologia da Associação Brasileira de Saúde Coletiva (Abrasco).
“Imagina se essa rede inteira pudesse fazer teste rápido de covid e tivesse integrada à vigilância epidemiológica? Quase nenhum país do mundo tem uma estrutura dessas.”
“A nossa atenção primária é exemplo e está diretamente relacionada com a diminuição da mortalidade infantil, além de já ter experiência na testagem de outras doenças, como infecção por HIV, sífilis e hepatites B e C”, conclui.
Onda silenciosa?
Sem essa informação dos diagnósticos, fica difícil entender como o vírus está se espalhando e se há alguma região que apresenta aumento nos casos de covid.
Vale lembrar aqui que essa doença costuma demorar alguns dias para apresentar sintomas, e só uma parcela dos infectados vai desenvolver sinais mais graves, que exigem uma avaliação médica e eventualmente até uma internação.
Ou seja: sem testes, os indivíduos com sintomas leves (ou sem incômodo algum) não sabem que estão com o coronavírus e muitas vezes seguem a vida normalmente, passando o patógeno adiante.
É justamente isso que cria as cadeias de transmissão viral na comunidade. Após algum tempo, isso pode desembocar em aumento das hospitalizações, escassez de insumos, leitos e profissionais e até o colapso do sistema de saúde.
Agora, quando esse repique é observado com antecedência, logo em sua origem, é possível reforçar as ações preventivas nessa região específica, como o uso de máscaras e distanciamento social, para controlar o problema no local e evitar que ele se espalhe para outros lugares.
Saber dessas estatísticas, aliás, é ainda mais estratégico num momento em que temos uma nova variante com alto potencial de transmissão, como a ômicron, que está por trás de recordes de casos registrados nos últimos dias em várias partes do mundo.
“Estamos vivendo uma onda silenciosa de infecções de ômicron e nem notamos isso, porque não temos uma política de testagem adequada”, observa o epidemiologista Pedro Hallal, professor da Universidade Federal de Pelotas.
Embora essa “onda silenciosa” ainda não apareça nas estatísticas oficiais, ela já começa a despontar em alguns levantamentos feitos por grupos privados.
A Dasa, que conta com mais de 900 unidades laboratoriais no país, divulgou que houve um aumento importante na taxa de positividade dos testes de covid-19 nas últimas semanas.
Em 4 de dezembro, 1,3% dos exames realizados traziam resultado positivo. Já no dia 26/12, essa porcentagem subiu para 11,4%.
Já a Associação Brasileira de Redes de Farmácias e Drogarias (Abrafarma) revelou que essa taxa de positividade dos testes realizados em cerca de 3 mil estabelecimentos saltou de 5% no início de dezembro para 20% após o Natal.
Falta de referências
Os especialistas se queixam da falta de transparência e na forma como os números sobre testagem são disponibilizados pelo Governo Federal, os Estados e os municípios.
Para piorar, algumas dessas bases de dados não são atualizadas desde agosto ou outubro.
Um exemplo dessa falta de referências aparece no site Our World In Data. Por lá, não há informações sobre a taxa de positividade de testes realizados no Brasil, o número de testes feitos para cada positivo ou os detalhes de quais são as políticas de testagem adotadas por aqui.
Esses mesmos dados relativos aos países da América do Norte, da Europa, da Oceania e de partes da Ásia e da América Latina estão facilmente disponíveis na plataforma.
Cota, da UFV, também sente na pele essa dificuldade de encontrar as estatísticas de testagem no Brasil.
“É muito complicado achar o número de testes realizados por dia ou por semana. Desde o início da pandemia, as Secretarias Estaduais de Saúde nunca priorizaram essa informação”, comenta.
O físico diz que, para manter o site, ele colhe as estatísticas sobre testagem de um outro repositório, chamado de Giscard.
“É onde encontrei as informações mais confiáveis até agora”, aponta Cota.
Lá, é possível ver o número de testes realizados por Estado, a porcentagem da população que passou pelo exame e a taxa de positividade.
Mas há um outro problema: os dados disponibilizados por algumas secretarias de Saúde estão muito desatualizados.
Em mais de dez Estados, como Pará, Mato Grosso e Rio de Janeiro, a última informação disponível sobre testagem é de 2 de outubro, há três meses.
“Infelizmente, o Brasil nunca foi capaz de trazer informações do tipo ‘ontem foram realizados 100 mil testes e 15% deles foram positivos'”, exemplifica Barberia.
“Até hoje, não foi realizada uma comunicação sobre a importância de as pessoas testarem e se isolarem quando o resultado é positivo”, lamenta.
A especialista em políticas públicas da USP faz uma comparação do que ocorreu com a testagem recentemente em dois locais: um nos Estados Unidos e outro no Brasil.
“Nos últimos setes dias, o Estado de Nova York, que tem 19 milhões de habitantes, realizou 1,5 milhões de testes RT-PCR”, informa.
“Já São Paulo, com 40 milhões de habitantes, sequer traz dados atualizados. Temos que nos nortear pelas estatísticas de novembro, em que foram realizados 300 mil testes RT-PCR durante todo o mês no Estado, sendo que dois terços vêm da rede privada de saúde e têm custo elevado”, compara.
Melhor indicador segue paralisado
Para completar o cenário de incertezas, o Boletim Infogripe, divulgado semanalmente por representantes da Fundação Oswaldo Cruz (FioCruz), não é publicado há mais de 21 dias.
No início de dezembro, o site e os sistemas de informática do Ministério da Saúde sofreram um ataque hacker que até agora não foi 100% solucionado.
O boletim é considerado uma das principais fontes para entender o estágio da pandemia no país. Ele compila e analisa os números de hospitalizações e mortes por Síndrome Aguda Respiratória Grave (SRAG) e indica as tendências de diminuição ou crescimento de casos.
Por lei, os hospitais são obrigados a notificar todos os pacientes com SRAG ao Ministério da Saúde. Em razão da pandemia e da alta circulação do coronavírus, depreende-se que a maioria desses indivíduos esteja mesmo com covid-19.
“Terceira semana consecutiva sem poder fazer a atualização do Boletim Infogripe por conta de entraves técnicos que seguem fazendo com que o ministério não repasse os dados. Em nome da equipe do Infogripe, pedimos desculpas à rede de vigilância nacional e à população”, escreveu no Twitter o pesquisador Marcelo Gomes, coordenador do relatório na FioCruz.
“Não temos como avaliar como está a situação das internações por infecções respiratórias em todo o território nacional. Na última semana de novembro, publicamos um alerta sobre a possível retomada do crescimento em diversos Estados. Como está hoje? Quais são os vírus que estão dominando em cada local? Quais as faixas etárias mais afetadas? Não sabemos…”
“Com isso, a rede [de vigilância] fica na dependência de sistemas próprios, nem sempre equivalentes entre os Estados, e a população fica desinformada ou com acesso apenas a relatos de unidades de saúde específicas”, lamentou.
Também no Twitter, o físico Roberto Kraenkel, professor da Universidade Estadual Paulista (Unesp) classificou a situação como “um escândalo que ainda não recebeu a devida atenção”.
“A Polícia Federal e o Ministério da Saúde não explicam claramente o que está acontecendo, nem porque está demorando tanto para restabelecer as bases de dados num momento em que a ômicron está em expansão iminente”, escreveu.
Magno, da Uneb e da Abrasco, destaca mais uma vez a sensação de estar às cegas num momento tão sensível da pandemia.
“A gente não sabe o que está acontecendo agora. Além da testagem muito aquém do ideal, vivemos esse apagão de dados, em que Estados e municípios apresentam dificuldade para divulgar o pouco que tínhamos à disposição”, critica.
Já Cota, da UFV, não aparenta ter muitas esperanças de que as coisas possam se modificar.
“Estamos praticamente completando o segundo ano de pandemia, não conseguimos evoluir na disponibilidade dos dados e não temos nenhuma expectativa de que isso vá melhorar”, avalia.
“Nos resta torcer para que os sistemas sejam restabelecidos para voltarmos ao que tínhamos antes do ataque hacker”, completa.
Fonte: BBC
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