Os dois anos de pandemia de covid-19 já ceifaram mais de 650 mil vidas no País, o que, além da inestimável perda pessoal, também significa um corte de R$ 16,5 bilhões por ano na massa de renda potencial das famílias brasileiras, segundo cálculos do Instituto Brasileiro de Economia da Fundação Getulio Vargas (Ibre/FGV) obtidos com exclusividade pelo Estadão/Broadcast.
O estudo, que busca mensurar a perda do capital humano brasileiro, considera as mortes de habitantes com 20 anos ou mais de idade, compilando os dados sobre as vítimas da doença desde o início da pandemia, em 16 de março de 2020, até 16 de março de 2022. Na faixa etária de 20 a 69 anos, foram 326,3 mil vidas perdidas no Brasil no período, o que equivale a uma massa de rendimentos médios mensais de R$ 754,3 milhões, o equivalente a R$ 9,1 bilhões a menos em um ano. Já entre os idosos a partir de 70 anos, a covid-19 vitimou 314,3 mil deles em dois anos de pandemia, o equivalente a uma massa salarial média mensal de R$ 617,0 milhões, ou R$ 7,4 bilhões perdidos no período de um ano.
“Essas pessoas não só usavam suas capacidades de trabalho, como também transmitiam isso para as próximas gerações. Quantas pessoas deixaram de fazer seus trabalhos e deixaram de transmitir suas experiências?”, questionou Claudio Considera, coordenador do Núcleo de Contas Nacionais do Ibre/FGV.
As principais vítimas da pandemia e covid-19 no Brasil são justamente os trabalhadores das famílias mais vulneráveis, negros e moradores de regiões de mais baixa renda, apontou um levantamento feito pelo Instituto Pólis – Instituto de Estudos, Formação e Assessoria em Políticas Sociais, sobre os dados de mortalidade por covid-19 no município de São Paulo.
Os resultados mostram que os homens negros tinham taxa de mortalidade 60% maior do que a média geral da população da capital paulista. Foram computadas 599,1 mortes de homens negros a cada 100 mil, enquanto que na população em geral essa proporção foi de 375,6 mortes a cada 100 mil pessoas. As mulheres negras também estiveram quase 40% mais expostas à mortalidade do que as brancas: a taxa de mortalidade das negras foi de 349,6 a cada 100 mil, enquanto a das brancas ficou em 251,5 a cada 100 mil. A análise do Pólis se baseou num cruzamento de dados públicos ou obtidos via Lei de Acesso à Informação, obtidas de diferentes fontes, como a Secretaria Municipal de Saúde de São Paulo (SMS), plataforma DataSUS/Tabnet e Open Datasus, do Ministério da Saúde.
“Nós analisamos dados que mostram que há uma sobreposição de vulnerabilidades em determinados territórios da cidade. As piores condições de renda, as piores condições de habitalibilidade, no sentido de maior densidade domiciliar, e é também onde se encontra a maior concentração de pessoas negras na cidade. Como se sabe, as pessoas negras também têm menor acesso à saúde. Não só na hora que estão infectadas, elas têm menor acesso à saúde para se curar, como elas têm comorbidades que elas nem sabem. Um outro fator é onde estão ocupadas profissionalmente. As pessoas negras estão ocupadas em sua maioria em ocupações que não puderam se isolar, não puderam fazer o home office”, enumerou Danielle Klintowitz, coordenadora geral do Pólis e pesquisadora dos estudos da covid-19.
O levantamento mostrou, por exemplo, um alto índice de vítimas fatais entre trabalhadores da construção civil e empregadas domésticas, funções que exigem baixos níveis de qualificação e possuem proporção alta de trabalhadores negros, disse Danielle. Ou seja, chefes de família em situação de maior vulnerabilidade social e financeira tiveram que continuar trabalhando presencialmente durante a pandemia, se contaminaram, perderam suas vidas, deixando suas famílias desamparadas financeiramente.
“Tem uma diminuição fundamental na renda familiar com a perda dessas pessoas. Grande parte delas são chefes de família. A gente vê a faixa de mulheres chefes de família com renda menor de três salários mínimos muito afetadas, deixando crianças órfãs. Estão perdendo a principal renda na casa. Tem muitos relatos de que esses territórios mais pobres e vulneráveis tiveram um aumento muito grande da fome por causa da morte dessas pessoas e também pelo desemprego. Isso ocasionou uma perda de renda muito grande nessa população. E a perda da vida dessas pessoas certamente desequilibrará a renda familiar, porque elas contam com o rendimento de todas as pessoas do domicílio para poderem fazer sua vida”, lembrou Klintowitz.
Na favela de Heliópolis, na zona sul da capital, a pandemia de covid-19 atingiu em cheio o rendimento das famílias. Um dos casos mais comuns, segundo Antonia Cleide Alves, presidente da Unas Heliópolis e Região, a associação de moradores do local, foi o de famílias em que algum dos membros, mais idoso, contribuía com a renda de uma aposentadoria ou algum tipo de benefício social e acabou sendo vítima da doença.
“Está muito difícil e foi muito difícil o período”, afirmou Alves, se referindo à combinação do drama pessoal de perder entes queridos com os problemas financeiros relacionados a toda a crise econômica causada pela pandemia, que passa pela “carestia” e pela falta de trabalho.
Desde março de 2020, a Unas atua em ações emergenciais para contenção dos danos da pandemia, como a distribuição de cestas básicas e a distribuição de máscaras faciais – a fabricação de máscaras de pano serviu tanto para produzir os equipamentos de proteção quanto para gerar renda extra para costureiras do local. A distribuição de alimentos chegou a atingir em torno de mil cestas básicas por mês, conforme a Unas.
“Quando as pessoas encontram um emprego, tem um salário menor do que era antes, é uma diminuição da renda”, completou a presidente da Unas.
O estudo da FGV calculou ainda o quanto essas vítimas brasileiras da pandemia poderiam acrescentar à sua renda familiar caso não tivessem suas vidas abreviadas precocemente pela covid-19. Considerando o rendimento médio obtido na idade em que morreram e a expectativa de vida de cada um em sua respectiva faixa etária, os 326,3 mil mortos pela covid entre os 20 e 69 anos no Brasil teriam capacidade de somar à renda familiar um total de R$ 285,9 bilhões até o falecimento por qualquer outra causa, fosse natural (motivos de saúde) ou mesmo violenta.
“Essa nossa conta acaba sendo até limitada, porque considera a renda média da data da morte, como se a pessoa não fosse evoluir. Ela poderia se instruir mais e dar um salto na carreira, por exemplo. É um cálculo limitado, mas é uma aproximação bastante plausível”, disse Claudio Considera.
Para Maria Andreia Lameiras, técnica de Planejamento e Pesquisa do Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada (Ipea), a perda de vidas e de renda chegou a impactar o consumo das famílias no País ao longo da pandemia, mas os programas de transferência de renda do governo, como o Auxílio Brasil, têm potencial para sustentar as famílias mais vulneráveis até que o mercado de trabalho mostre uma melhora mais significativa, com mais empregos e melhores salários.
“Parte dessa renda que foi perdida na pandemia está sendo recuperada com esse Auxílio Brasil”, opinou Maria Andréia Lameiras. “No médio e longo prazos, o que se espera é que a gente tenha uma economia que esteja crescendo mais e que parte dessa renda perdida das famílias seja recomposta via salários (de quem continua vivo e trabalhando)”, completou.
O processo de redução do capital humano permanece em curso, uma vez que a pandemia ainda vitima mais de duas centenas de pessoas diariamente, mortalidade superior à de várias enfermidades e até de guerras, notam os pesquisadores responsáveis pelo estudo da FGV.
“Fico espantado com essa banalização que estão fazendo com esses 300 mortos por dia. É só você ver quanta gente morre na guerra na Ucrânia. Ainda estamos em guerra contra a covid”, disse Claudio Considera, do Ibre/FGV, para quem o elevado saldo de mortos no País é consequência do atraso no início da vacinação da população brasileira contra a covid-19 e da postura do governo federal, que teria optado pela defesa de remédios ineficazes contra a doença em vez de investir massivamente em uma campanha de conscientização da população em prol da imunização coletiva.
O levantamento da FGV considera os óbitos por suspeita ou confirmação de covid-19 na data da morte registrados no Portal de Transparência do Registro Civil, com indicação de sexo e intervalos de idade. Já o cálculo da renda mensal tem como base informações sobre o rendimento médio da Síntese de Indicadores Sociais de 2019 para Brasil, Rio de Janeiro e São Paulo, por sexo e nível de instrução, conforme divulgado pelo Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE). A estimativa sobre a renda que ainda poderia ser gerada pelas pessoas que morreram precocemente na pandemia se baseou em dados do IBGE sobre as diferentes expectativas de vida dos brasileiros segundo gênero e idade.
Fonte: Estadão
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